terça-feira, 24 de março de 2009

Uma candidatura necessária

Já aqui dissémos que a apresentação pública da candidatura de Elisa Ferreira à Câmara do Porto foi um acto político muito participado, emotivo, inteligente e promissor. Vejamos as razões.
Em primeiro lugar, a participação teve a ver não só com o número elevado de presentes nesse acto, mas sobretudo com a heterogeneidade social e política dos que quiseram estar na Alfandega. Coisa rara nos dias que correm, essa heterogeneidade teve voz tanto nos discursos
formais como nas conversas informais. Autarcas do PS e ambientalistas independentes cruzavam argumentos sobre a qualidade da vida urbana ; empresários social-democratas e membros da administração pública indignavam-se com as oportunidades que a cidade tem perdido; militantes bloquistas e gente das artes insurgiam-se contra o estado deplorável da cultura citadina; comunistas conhecidos e pessoal dos bairros denunciavam o desemprego, a falta de creches e os projectos para o Aleixo.
A emoção genuina esteve presente no auto-retrato da candidata, mas também no modo como ela olha a cidade e as pessoas. Não houve lugar a fingimentos nem encenações. Aonde não chegou pela razão, chegou pela cumplicidade e pela humanidade. Trouxe para dentro do discurso político os afectos e a vontade singela de lutar por uma causa. Quando, já em tempo extra, a sala cantou o "Porto Sentido"percebeu-se que sim, que desta vez é possível.
Foi inteligente: nada de "mesas oficiais", onde o que conta é quem se senta à direita ou à esquerda, quem preside e quem fica na ponta. Decidiu o alinhamento e a duração dos discursos de forma competente. Equilibrou grupos e sensibilidades do PS com independentes e militantes de outros partidos, como nunca tinha acontecido nas anteriores apresentações de candidaturas à câmara.
E foi promissora, sem nada prometer a não ser a sua total entrega a um projecto político claro. Desde logo porque conseguiu explicar a importância de uma nova forma de fazer política para resolver os velhos problemas da cidade. Depois, porque esse objectivo exige acordar a cidadania adormecida nos "tripeiros", nas associações, na academia, nos sindicatos, nas empresas, na cultura, nas colectividades de bairro. Por fim, porque "olhos nos olhos" com o Governo, afirmou a necessidade de romper com o centralismo e o paroquialismo e pugnar por uma cidade feita por todos e para todos.

segunda-feira, 23 de março de 2009

Esta cidade não é para velhos?!

Segundo o INE, em 1991 os residentes no Porto com mais de 65 anos de idade eram 41.455, ou seja, representavam 14% da população. Passados dez anos, a população em geral diminuiu mas o número de residentes idosos aumentou, passando para 47.888, ou seja, 18%. Hoje, andará à volta dos 20%.
Quer isto dizer que 1 em cada 5 portuenses tem mais de 65 anos. E a cidade, a quem deram muita da sua força de trabalho, como é que os trata? Mal...!
Desde logo na questão da habitação porque as pensões de reforma, na maior parte dos casos, não chegam para pagar obras mínimas mas necessárias (telhados, canalizações, janelas, etc.).
Depois, nas ruas, praças e jardins, onde os passeios são estreitos e irregulares, quando não estão ocupados por carros ou tapumes, os bancos são desconfortáveis e os sanitários públicos quase não existem. Fugir aos buracos e à lama é-lhes penoso no inverno. Procurar uma sombra de árvore ou um perfume de flores no verão é-lhes impossível perto de casa. Correm riscos escusados quando atravessam ruas sem passadeiras para peões, quando sobem e descem degraus gastos pelo tempo ou quando querem apanhar o autocarro. Embora gostem dele, não usam o metro porque o "andante" é complicado...
Por fim, na questão da sociabilidade, os poderes públicos locais também não querem saber deles: os centros de dia são escassos e miserabilistas, os lares permanentes caríssimos, a assistência domiciliária insuficiente e burocratizada, o acesso às unidades de saúde local difícil.
A cidade, que diz ser "educadora" e "criativa", não tem políticas integradas para a terceira idade!

quarta-feira, 11 de março de 2009

Checkpoint do tema



Coloquei-me dentro de uma campânula de vidro. De média espessura. Estava à vontade. Havia luz, havia largura. E fiz jejum, principalmente de notícias e comentários, atum de lata social. Pus-me ao abrigo de intempéries emotivas, políticas, literárias e outras... são”coisas” como estranhas monções ocidentais. Também elas sazonais. Ouviam-se os velhíssimos pardais da cidade. Mas eu queria que se operasse uma mutação, onde o silêncio deixaria piar inconcretas aves dos começos da criação. Tive, no princípio, cuidado com a posição dos tornozelos...a posição devia ser, para mim, dentro da campânula, uma postura. E o silêncio foi-se fazendo, manhã dentro, nos dias a fio em que esperei resultado, despido, como quem paga uma promessa. O tema, esse não era uma questão de pressa, mas sarar uma ferida, iniciar, de lobo, uma corrida, sobre a ferida colocar uma compressa. Fora da campânula, mortais, como eu, movidos a energia, passam da direita para a esquerda e da esquerda para a direita, na labuta de formigas, cegas de dia a dia, surdas de relógios, mesmo daqueles que servem para medir ócios. Nem através do vidro olhavam, não tinham tempo (que é isso do tempo? “O tempo é tudo e nada, o homem a ele igual” (1), e, se lá dentro estivesse um macaco, também não se importariam que o macaco fosse eu. Dentro da campânula podia estar uma obra prima em gesso ou decorrer um sábio congresso, as multidões não procuram tema, vivem no ouro da fome, da miragem das piscinas, e das cilindradas…muito menos de um poema
(...)
Mas, e a faceta subjectiva da situação que desencadeara? O tema como cordão que vai tecer o texto, que lhe vai, umbilicalmente, indicar um rumo, continuaria a ficar como pretexto? Até aqui, a este exacto ponto deste narrar (a vírgula), zero. Zero ou nada? Grau zero pelo menos, de uma escala que não vemos, nem sentimos como conhecimento, nem exteriorizamos como lamento. Nada portanto... por enquanto. Ainda não tinha escapado à contemplação entre o umbigo e a paisagem, ao colocar dos tornozelos e ao silêncio fast food em que se tinha constituído a situação. Banal, adaptável e consumível, ainda politicamente correcta, no movimento electrónico dos dias que iam passando, num sono acordado. Um tema. Um pesadelo. Algo que estivesse do lado certo da luta, estando, para dar uma ajudinha, leve, às trabalhadoras formigas, do lado errado. Quem sabe, no centro da espessura do vidro, na contemporaneidade constante da sua transparência, viandante da sua própria estrutura molecular. O tema devia andar no ar. Um tema... um tema tem que voar.
(...)
Fugir! Fugir, que há destino, quando queremos escrever um naco de letras com sentido, e isso constitui-se em ruído, contra a preguiça e logo à partida presunção de inutilidade. Pouco mais há acrescentar à estúpida obra da humanidade... o tema poderia só ser a procura da felicidade, no ouvir correr um regato, não metafísico, não literato...
Tinha levado comigo, para dentro da campânula, um exemplar da edição da “Antígona” de “Os livros da Minha Vida” de Henry Miller. Quando olhar através do vidro me cansava, lia e tomava notas num pequeno conjunto de papéis (não gosto de cadernos de notas com lombada). “Para o escritor, um livro é algo que se vive, uma experiência, não um plano a ser executado de acordo com leis e especificações” (pág. 15). Esta pequena frase apaziguou-me. Fiquei bêbado de um pouco de confiança. Ler, como escrever, pode embebedar. Miller embebedou-me. E, de cor (porque surgem nestes momentos estas “coisas” de cor?) nalgum sítio da minha cabeça: “o homem, pré-histórico mascarado de bom grado, em feiticeiro cornudo, entregava-se, nas cavernas, a caçadas mimadas...”. (2)
É isso, Miller, nada de planos pré-concebidos, viu-me bem dentro da minha caverna-câmpanula, mimando angústias de criação, sem ossos religiosos e outros elementos de mistificação. Quando para si deve ser ”tudo realizado com discrição com tacto e devoção”. Dizia, ainda, Miller, isto, quando discorria acerca de Dante. Acrescentava: “Faltam-me as palavras”. Como lhe podiam faltar as palavras? Porque foi quem foi e, porque de Infernos e Invernos sabia ele tudo. Nos temas, nos livros e fora deles. Principalmente, fora deles, segundo o seu próprio julgamento, na vida e no pensamento, fora deles A campânula está ficar azulada com o cair de mais uma noite eterna, dentro das cavernas do filosofar escrevente. É por estas horas, que o tema voa, se escapa, não se deixa caçar com gramáticas, dicionários, enciclopédias e, proclama, só, a singeleza, para a humanidade, do ser e do estar. Contudo há uma substância do existir em texto, nem que seja uma nova maneira de viver no silêncio, agindo na quietude das esperas. Descobre-se, então que o mundo são esferas rolantes do tempo, e, o tema, primeiro pensado, uma falaciosa ilusão. Azula-se, mais, a campânula, fecha-se um pensamento negro. Como Miller, nada de presunção. Se ninguém quiser nada com o tema, óptimo. Se o tema aparecer que eu, ou cada um, que diga o que tem a dizer... Óptimo.
(...)
Começa a soprar uma brisa do Norte, mesmo feita em Portugal. Aventureira, cobre tudo de uma limalha de cobre, cor e textura adequadas para a busca da concisão. Aventureira porque não faz escolhas. Vive, espalhando limalha de pensamentos e a espalhar, também, uma lúcida confusão. E ainda ouço, Miller que estive a ler: “Uma das poucas recompensas que um autor obtém pelos seus esforços é a conversão de um leitor num amigo pessoal e caloroso.”. E, lembro-me, por aquilo que posso ter vivido que não há tema ou texto que resista à traição, de si, pela sua própria construção. Assim o que valha a pena talvez seja o aperfeiçoamento e a superação na nitidez do dizer. Como Miller, passe a imodéstia, assim penso que pode e deve ser. Saio da campânula. Estou calmo no julgamento e consequente nos propósitos para o combate. Sinto-me um velho Cavaleiro paisagem fora, dentro de uma tela de Magritte, levo um escudo e uma flâmula vermelha.... o tema... Depois de vencida a distância, o tema, é, só um checkpoint...lá toma-se uma bebida quente, de rebentamentos e sons sincopados de automáticas armas...é a Globalização? Veja Henry Miller, tanto livro, tanto tema, e a humanidade ainda não conseguiu a libertação!



José Carlos Martins
Inverno 2005



Bibliografia:

(1) “Pensamentos sobre o tempo”, Paul Fleming, “O Cardo e a Rosa - Poesia do Barroco Alemão (antologia)
(Tradução de João Barrento)
(2) “As religiões da Pré-História”, André Leroi-Gourhan, Prespectivas do Homem, Edições 70
(3) “Os livros da minha vida”, Henry Miller, Antígona

sexta-feira, 6 de março de 2009

Castanhas e conversas "p'raquecer"

Mãos calejadas e hábeis embrulham-nas nas folhas de revista que as conservam quentes e boas. São esbranquiçadas, com tons de azul e prata, por cima do castanho-escuro que lhes deu o nome. É como se estivessem maquilhadas e perfumadas por um fino "pó de-arroz" que as torna desejáveis...! Estão nas esquinas mais movimentadas, nas saídas do metro, à porta do Sto. António ou no Marquês. Anunciam-se sem alarde: ainda não as vemos e já lhes sentimos o cheiro inconfundível!
Nos carrinhos ou nas bancas, os que as "fabricam" já foram operários de outras fábricas, oficiais de outros ofícios. Hoje, guardadores de memórias que alimentam a conversa sem pressas, são também artistas de uma arte de que a ASAE não gosta...!

Os "eléctricos" de há 30 anos

Subiam e desciam os Clérigos na aventura de ligar as gentes de Pereiró, de Monte dos Burgos ou do Ameal. O "20" e "21" entonteciam na enésima volta, sempre igual mas sempre diferente, entre o Marquês e a Rotunda. Outros apanhavam ar do Infante até à Foz ou espreguiçavam-se manhã cedo na Ponte da Pedra. Conviviam, paredes meias, com o Sto. António e o Maria Pia, com o Bom Sucesso e o Bolhão, com o Alexandre Herculano e o D. Manuel, com o Bessa e o Vidal Pinheiro, com a Lapa e o Bonfim. Prisioneiros dos trilhos, atrapalhavam-se com o trânsito, com os putos e com as ladeiras. Democráticos, a troco de algumas "croas", acolhiam homens de letras e analfabetos, trolhas e engenheiros, velhos e catraios, morcões e passarões. Cumpriam escrupulosamente a sua função social: ligavam os lugares, juntavam as pessoas, cerziam as relações, transportavam sonhos e teciam a cidade.
Passados trinta anos, cheios de "liftings", voltaram, mas já não juntam nada nem ninguém!