sexta-feira, 5 de junho de 2009

ÁFRICA


Fazes um esforço com os sentidos? Fixas o chão, inspiras pelo nariz e tentas experimentar, no calor de um outro mundo, o cheiro a palha em decomposição, terra misturada com excrementos de vaca magra, caju, suor…Parece absurdo mas resulta adocicado, entre o totalmente estranho e o açúcar mascavado.
Há os sapos que saem, na época das chuvas, de olhos esbugalhados, para tanto zumbido, sinfonia e opereta da desgraça humana e são calcados e são esborrachados por uma bota ou um pé nu, ou a bengala de um coxo, mudo, que os invectiva, com gestos de mão universais.
Que calor aqui está! Um calor palúdico, de arrozal, animista, cheio de deuses do bem e do mal. Sim, aqui, na página, em que ainda escrevo à mão, como se tratasse de um aerograma amarelo, a que era preciso lamber a cola, com mil cuidados, avaliando, já antanho, a qualidade da saliva. Saliva tantas vezes seca pelo medo e pela música presente, vinda não se sabe de onde, tão perto como o velho preto, com cataratas nos olhos, de carapinha rala e, que, ainda assim, continua a tentar ler o Corão. Cajado ao lado, como ele cansado, de tanto passo, de escravatura, de tanta dor.
Eu vi mães a catarem piolhos e lêndias e piolhos aos filhos bebés, mamas caídas peito abaixo, mordendo os piolhos nos dentes, não para os comer, que eram pequenos para lhes matar a fome, mas para que morressem de morte certa. Que berrassem na garganta delas, de goelas abertas, num estertor sem volta possível dos sucos do estômago e não tornassem a incomodar os seus meninos.
E matavam o tempo em espera do tempo: do tempo que fosse o tempo presente, para além dos saltos circuncoloquiais, que nas conversas com outra mulheres, era sempre um tempo um tempo de futuro, quando isto… quando aquilo...e os piolhos… e a lama na época das chuvas e a lepra e a filha bajuda e o tuga, a tabanca, e…os respeitados possuidores de uma máquina de coser, a pedal, os vendedores de banha da cobra, o arroz miúdo, os mortos de ontem (estes em surdina).

E…no sol, e nas reticências é a melhor maneira de ficar, aqui, no papel de África, lutando contra o esquecimento do Mundo e da Globalização capitalista, olhando o metafísico embondeiro, sacudir um mosquito, lutar em voos sonhadores e estar. Permanecer.

José Carlos Martins
4 de Março de 2009

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